Ciência e desenvolvimento
O governo do Estado realiza, de 14 a 16 dezembro, a Feira Internacional de Ciência e Tecnologia, no Hangar, com nomes importantes do cenário científico mundial. Dentre eles, o doutor Vladimiro Miranda, professor Catedrático da Universidade do Porto, em Portugal, e também Director do INESC Porto, o mais importante instituto privado e sem fins lucrativos e de investigação em tecnologias da informação em Portugal. Fellow do IEEE (o mais alto grau profissional conferido no mundo por essa instituição dos Estados Unidos) e autor de mais de 200 publicações, das quais se destacam os artigos sobre a aplicação de inteligência computacional aos sistemas de energia, Vladimiro Miranda tratará em Belém da experiência da União Europeía nas políticas de Ciência e Tecnologia. Nesta entrevista exclusiva, fala sobre grandes projetos em implantação no Brasil, como o pré sal, biocombustível e Belo Monte: “Creio que a alteração do clima e a seca poderão destruir muito mais a Amazónia do que Belo Monte”. Confira a entrevista:
Vivemos a Era da Economia do Conhecimento. Como senhor avalia a produção de ciência e tecnologia hoje?
A Era do Conhecimento deveria chamar-se, mais apropriadamente, Era do Conhecimento Democratizado, pois o que distingue esta de outras eras é a generalização da educação como conceito-pilar do desenvolvimento humano e não apenas propriedade de clubes fechados ou elites. E o que muda é a relação de poder no mundo: o conhecimento democratizado é a forma suprema de globalização.
Na Era do Conhecimento Democratizado, o maior capital de um país é o capital humano: cada pessoa passa a ser um ativo valioso e a população, o mais valioso ativo de um país. Por isso, na Sociedade do Conhecimento, os países com mais população e que cuidarem da sua educação ganharão inevitavelmente ascendente sobre os outros, a prazo. É o que estamos a assistir com o emergir da China, mas em geral todos os países de grande demografia ganharão ascendente logo que neles se instale a Sociedade do Conhecimento. O Brasil, dada a sua dimensão, tem aí um potencial enorme.
Nunca na história da Humanidade se gerou tanta Ciência e produziu tanta Tecnologia. É uma certa vitória da racionalidade sobre o animal – mas não é vitória segura, porque proliferam também forças obscurantistas, retrógradas, que propagam a superstição, que se ancoram no medo e na demagogia, que querem um poder baseado em crenças, que combatem a ciência porque a ciência desmascara os seus dogmas – e esses são fonte de poder secular.
A produção de ciência na Europa tem uma perspectiva de tradição. Como vê a América Latina entrando neste processo? Em especial o Brasil?
A produção de ciência num país não ocorre por geração espontânea. Para arrancar um país de uma planície improdutiva e elevá-lo a um planalto superior, tem que se conjugar um conjunto de fatores favoráveis: e, em primeiro lugar, eu diria a sorte de um povo possuir dirigentes visionários. Porque é necessário aplicar sustentadamente, por décadas, uma política consistente que esteja acima dos partidos e dos interesses locais. Essa política não é uma coisa simples – ela tem que cuidar da educação básica; tem que criar um clima favorável à exigência e à qualidade; tem que usar instrumentos de incentivo para atrair jovens para estudos tecnológicos e das ciências experimentais, mais do que para gestão ou direito ou atividades lúdicas ou sem base tecnológica; tem que criar uma cultura de avaliação e responsabilidade nas universidades e centros de pesquisa; tem que conceber mecanismos de incentivo à pesquisa com base em ciência, mas socialmente relevante; tem que conceber e aplicar instrumentos de apoio à indústria, quer na inovação quer na própria pesquisa; tem que desenvolver um guião (um road map) para promover a modernização tecnológica das indústrias tradicionais; tem que desengessar a Universidade da burocracia asfixiante e da administração pública que a condena a ser irrelevante na ligação com as empresas; tem que aumentar a exposição internacional da ciência doméstica; tem de cultivar uma relação com a mídia que eleve o estatuto social do cientista; tem de….
Um verdadeiro programa de Governo. Só políticos com muita força, visão e determinação vão conseguir montar um programa desses que sobreviva ao ruído da política e da politiquice.
A América Latina não foge à regra: onde tem dirigentes lúcidos, tem oportunidades magníficas. Não há nenhuma “maldição do hemisfério sul”, que é por vezes apenas uma boa desculpa para justificar incompetências próprias. O presidente Lula, parece-me, é um desses homens raros, jóia preciosa que um país pode gerar – e, na minha avaliação, fez o Brasil dar passos na direção certa.
O país que não desenvolver ciência e tecnologia está fora da nova ordem global?
Um país que caia na armadilha de desconsiderar a ciência e tecnologia condenará o seu povo a ficar na base da “cadeia alimentar”: a ser predado por outros predadores, a ser pobre e apenas servir os outros.
Qual a leitura que o senhor faz da importância da produção de ciência na Amazônia?
A emergência de competências locais é um dos sintomas do desenvolvimento de regiões ou países. Elas precisam de um acarinhamento numa primeira fase, mas não confundir com caridade, que em ciência acaba por alimentar parasitismo. Mas a Amazônia, como região, tem que fazer escolhas, não pode pretender, com a pequena população que tem, de repente começar a desenvolver todos os campos do conhecimento.
O problema não é produzir ciência na Amazônia: é saber para que serve a ciência aí produzida. Se a Amazônia não tiver um tecido industrial que possa interagir e absorver a ciência produzida, não haverá produção de efeitos socialmente relevantes. Por isso, as duas políticas – de estímulo à ciência e de incentivo à tecnologização da indústria e serviços – têm que ir de mão dada. A produção de ciência tem que ter clientes locais – ou então, a inteligência local apenas está oferecendo mais valia para outras regiões.
Os Parques de Ciência e Tecnologia foram usados em países europeus, como Inglaterra e Espanha, como mecanismos de redução das desigualdades regionais. O Pará começa agora a construir três parques tecnológicos. Como avalia esta iniciativa?
A iniciativa é altamente meritória. Espero que seja apenas uma peça de uma política mais vasta, e que seja uma política a sustentar pelos poderes políticos que se seguem. Há estórias de êxito e de fracasso nos Parques Tecnológicos na Europa, e esse conceito existe na União Europeia, em Portugal, na Dinamarca, na França, e os sucessos e falhanços também.
O que importa é ter um conceito focado e coerente para o que se quer com cada parque – e, depois, ser perseverante. Um Parque de Ciência e Tecnologia não é para dar resultados nos 4 anos de um mandato político.
Qual a sugestão para o Brasil para os seus investimentos em C&T em médio e longo prazos?
Não terei arcaboiço para me aventurar em tal sugestão e seria meter a foice em seara alheia… Mas sempre irei dizendo que, se não houver uma aposta fortíssima na educação, na sua qualificação e valorização, em todos os níveis, tudo o mais vai ruir – porque a base da sociedade do conhecimento são as pessoas.
A União Européia tanto fortalece os países como inocula no processo a fragilidade de alguns deles. Primeiro foi a Grécia, agora a Irlanda. O senhor acredita que a União Européia vai se consolidar?
A União Europeia não é um país – é uma aliança de países soberanos. Ela foi criada, primeiro que tudo, para evitar e acabar de vez com a guerra na Europa. Durante mais de 1000 anos, desde o Império Romano, não houvera um só ano com paz em toda a Europa. E, desde que a União Europeia foi criada, já gozamos mais de 50 anos de paz. Por isso, não tenho dúvidas: nós precisamos de uma União, e ela vai resistir. Depois, também não é conveniente irmos enganados na histeria mediática, que serve na verdade aos interesses mais retrógrados e neoliberais – e está servindo, presentemente, para fazer com que aqueles que causaram a crise mundial (falo em geral da banca e interesses financeiros) e pediram socorro aos Estados, agora se sintam com força para morder a mão que os alimentou. Não esquecer que os países (Islândia, Irlanda, Reino Unido, Portugal) tiveram que se endividar muitíssimo para acudir aos bancos falidos, e agora são os financeiros que especulam com o afundamento desses países. Só posso reafirmar: não vai acontecer nada de catastrófico, a União vai ficar mais unida.
O senhor virá a Belém participar da Feira Internacional de Ciência e Tecnologia na Amazônia e vem falar justamente da política de C&T na União Européia. Como se dá esta política?
A política atual da União Europeia desenvolve-se em dois planos: um passa em Bruxelas e outro assenta nas políticas individuais de cada país. Ela visa não só a Ciência e a Tecnologia, como a competitividade mundial da economia europeia e ainda a coesão da União.
Por isso, na generalidade dos programas europeus de pesquisa, a Comissão Europeia (o Governo da Europa, em Bruxelas) só financia projetos em consórcio e com participantes de mais que dois países. Esse aprendizado de trabalhar em equipa, em consórcio colaborativo para um fim comum, é um dos maiores valores da política europeia – e permite lançar e apoiar projetos pluridisciplinares, de grande dimensão e com relevo.
Para além disso, em muitos programas praticamente não é possível obter a aprovação para um projeto, e seu financiamento, se não participarem empresas no consórcio.
Finalmente, há uma cultura de exigência, monitoramento e validação. Os projetos são acompanhados por “officers” que garantem que o contrato com a União é cumprido pelo consórcio, participam nas reuniões de projeto, discutem resultados e metas, etc.
Esta política não está dependente do atual cenário econômico. Ela é plurianual, é definida por Programas-Quadro e sustentada pelo orçamento da União (com contribuição, portanto, de todos os países). A Europa tem um desafio difícil pela frente, que é um problema de escala e de decisão, na competição com os Estados Unidos, e é um problema de competitividade, face à emergência de uma potência global como a China com vocação industrial.
Por isso, essa política vai manter-se certamente, e com maior inclusão de parceiros terceiros (como o Brasil) pois a Europa precisa de aliados e não quer, não deve incorrer no erro de se julgar auto-suficiente ou cair em isolacionismo.
Na sua avaliação, a descoberta do Pré-Sal pode retardar as pesquisas na área de energia alternativa no Brasil?
Não tenho essa visão. De modo nenhum. O petróleo no pré-sal vai ficar caro de explorar e a exigência tecnológica para o fazer em segurança, ou até mesmo simplesmente para o conseguir fazer, é gigantesca. As fontes renováveis são um seguro de vida de um país, são fontes endógenas, não dependem de importação. A sua viabilidade vai aumentar porque não vejo como poderá descer o preço dos combustíveis fósseis: só pode subir. O que importa é saber se o Brasil vai dar passos tímidos ou vai desejar posicionar-se na fileira dos produtores de bens de equipamentos, seja para renováveis ou para o pré-sal.
Sabe, é delicioso recordar a lição que Saramago evoca no seu Memorial do Convento, sobre como a construção do Convento de Mafra foi feita à custa da importação de tecnologias e produtos acabados e Portugal apenas deu a mão de obra não qualificada. O Mosteiro fez-se para nossa vaidade, mas o país ficou mais pobre e enriqueceu os outros.
Pois o desafio que o pré-sal coloca é de saber se a política industrial e científica vai favorecer a criação de tecnologias endógenas, que mais tarde se exportarão, ou se vai fazer-se apenas na perspectiva extrativista, ou seja, com saber, ciência e tecnologia alheias de povos exteriores que as venderão e lucrarão com as respectivas mais valias, para felicidade das suas pessoas e empobrecimento do povo brasileiro. O que mais desejo é que a lição da História, de uma época em que estávamos juntos e que é, portanto, de alguma forma nosso patrimônio comum, seja aproveitada pelo meu povo irmão – e que não queira, por novo-riquismo, fazer do pré-sal o seu gigantesco Convento de Mafra Submarino.
Como avalia a questão do biodiesel como fonte de energia e a posição que o Brasil vem ocupando neste contexto? O senhor tem conhecimento da experiência com o dendê, de onde o Pará pode ser projetado como o maior produtor do planeta?
Os biocombustíveis são parte da solução, mas não são a solução definitiva do problema energético, nem mesmo a solução sustentável final. O Brasil tem condições únicas para a promoção de biocombustíveis e tem experiência e até tecnologia única no caso do álcool, mas o cálculo é fácil de fazer: com a tecnologia atual, os biocombustíveis rentáveis à escala planetária implicam o recrutamento de solo arável, retirando-o à produção de alimentos. Por isso, o assunto tem que merecer uma opção política responsável.
Quanto ao potencial do Pará, a minha resposta é sempre a mesma: o Pará tem que escolher se quer ser apenas um produtor agrícola, importando a tecnologia dos outros, ou se quer desenvolver tecnologias endógenas e exportar produtos biocombustíveis de valor acrescentado, retendo localmente a riqueza. Está muito bem que tenha um enorme potencial de produção da matéria-prima mas, se não tiver uma política consistente (de reforçar as suas Universidades para endogeneizar conhecimento e tecnologias – e de oferecer incentivos para o desenvolvimento de indústria local de base tecnológica), então o resultado é conhecido. Será gerado apenas emprego de baixo valor ou pouco qualificado, e o valor acrescentado beneficiará outras regiões ou países.
Como o senhor vem observando a discussão sobre a construção da hidrelétrica de Belo Monte? Uma corrente acredita que o Brasil pode sobreviver sem este empreendimento...
Se a discussão se centrar na palavra “sobreviver”, então basta-nos regressar à idade da pedra.
O problema está na qualidade de vida que se sonha para o nosso povo. Quando se deseja um povo feliz e com boa qualidade material de vida, há que fazer compromissos entre os vários impactos que a ação humana tem no mundo. A decisão, tendo que ser planetariamente responsável, tem que ter em conta também os custos de “não fazer”. Neste tipo de casos, o mal é que se está sempre contra um caso particular, mas não se oferecem alternativas – e quando se fala noutra alternativa, já se é contra também. Esta não é uma forma responsável de abordar um assunto sério.
O planeta não pode viver, nem irá sobreviver, usando e esgotando os combustíveis fósseis. O recurso às fontes renováveis, como a hidrelétrica, é essencial. O Brasil é um país privilegiado nesse recurso.
O Brasil é, também, um país civilizado, e tem nos seus órgãos públicos pessoas responsáveis e muito conscientes e defensoras do ambiente. Se, após tantos anos de polêmica, o licenciamento ambiental está concedido, não me compete vir questioná-lo.
O que sei é que, por atrasos e lentidão da construção de hidrelétricas, o que se vê a crescer no Brasil são usinas termelétricas, aumentando as emissões de CO2 para a atmosfera e contribuindo para pôr em risco o futuro dos nossos filhos. Será isso responsável? Será responsável bloquear sistematicamente os aproveitamentos de renováveis e fazer pouca ou nenhuma contestação aos “envenenadores do clima”?
A União Europeia tem mantido uma posição muito coerente sobre este problema, e nós sabemos quem tem arrastado os pés e sabotado os esforços de se ter uma política de combate às alterações climáticas: é precisamente a maior potência mundial, mas que não tem sido a mais responsável. O Brasil errará, se seguir os erros do hemisfério norte. Errará em causa própria, e errará se julgar que escapa ao problema. Creio que a alteração do clima e a seca poderão destruir muito mais a Amazónia do que Belo Monte – mas deixaria esse debate para os próprios brasileiros.